domingo, 27 de março de 2011

Um dia das férias

Quase na metade do dia, pouco antes do horário do almoço, ele chegou caminhando lentamente e sentou-se no banco da praça central da cidade. Trazia um jornal em baixo do braço direito. Queria descansar e ao mesmo tempo observar o movimento do comércio, das pessoas, da praça... Fazia muitos anos que ele não tinha um programa como esse. Afinal, trabalhava das seis da manhã às oito da noite e o pouco tempo que sobrava, ele tirava para descansar.
Estava em período de férias do trabalho e seu objetivo era aproveitar ao máximo, cada momento. Pensou também em rever alguns amigos de infância, adolescência e juventude. Em sua cabeça, tudo era festa. Levantou o rosto, olhou calmamente para os lados, abriu o jornal e passou os olhos pelas manchetes, fotos, legendas e chamadas. Não tinha o hábito de ler jornais diariamente. Naquele momento, tudo o que ele desejava era espairecer, arejar a mente.
Descontraído, abriu na página de esportes para ver a classificação de cada time. Nesse instante, chegou um senhor vestido de terno, abriu sua Bíblia e começou a fazer a leitura em voz alta, quase aos berros. Impossibilitado de se concentrar, o trabalhador foi obrigado a interromper a leitura. Porém, fingiu que estava lendo. Não queria cometer a deselegância de se levantar e sair naquele momento, mas sentiu-se mal diante de tamanho incômodo. O jeito foi esperar um pouco para depois sair, sem desrespeitar o pregador.
Enquanto fingia que estava lendo, do outro lado, a pregação fervorosa não parava, até que em dado momento, o pregador, aos berros perguntou: - por que, em vez de ler jornal, as pessoas não se preocupam mais em ler a Bíblia? Por que, em vez de ficar sentado na praça, sem fazer nada, não vai à igreja? - Extremamente constrangido, o trabalhador fechou o jornal e colocou-o sobre o banco. Levantou-se e olhou bem para o pregador e o reconheceu. Era uma figura conhecida que freqüentava a mesma igreja em que ele e a família iam todos os domingos.
Em silêncio e de cabeça baixa, o trabalhador saiu. Enquanto caminhava - bem devagar -, em sua cabeça pairavam algumas dúvidas: - A liberdade de culto dá o direito de ele falar dessa forma com as pessoas? Ele tem o direito de falar!!! E as demais pessoas??? Não têm o direito de não querer ouvir??? – Enquanto isso, o pregador permanecia ali, aos berros. Ao lado, um banco vazio. Sobre o banco, um jornal e na igreja, uma família inteira a menos.

Fiore

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Trabalhador

Todos os dias ele chegava bem cedo e assumia seu posto na mesma rua e na mesma esquina. Seu trabalho era estender as mãos e ficar à espera de uma ajuda. Uma moeda ou uma nota, talvez. Por menor e mais simples que fosse o óbolo, cada centavo tinha um valor incalculável para sua sobrevivência. Não faltava e nem perdia hora na luta pelo pão de cada dia. Um trabalhador verdadeiramente esforçado e digno de todas as honras e prêmios por fazer valer a dignidade e o direito à vida.
Todos os dias ele chegava bem cedo. Um ser humano especial que, ao se colocar em seu posto de trabalho acendia em cada rosto (que por ali passava) a luz do amor, quase sempre endurecido e petrificado ante os abusos da boa fé das pessoas. Portador de deficiência progressiva e irreversível, como gigante postava-se diante dos olhos do povo para dar seu grito de igualdade. Um grito real que rasgava o véu da indiferença e descortinava a hipocrisia do poder verborrágico.
Todos os dias ele chegava bem cedo e assumia seu posto na mesma rua e na mesma esquina. Sua presença era uma vitrine do descaso e da omissão dos cobradores de impostos que têm como único objetivo aumentar o faturamento e os índices de popularidade. Todos os dias ele chegava bem cedo para não nos deixar esquecer de que somos felizes e agraciados pela divina providência que nos presenteia diuturnamente com a força, a saúde e o privilégio da fé que movimenta e dá vida aos nossos sonhos.
Todos os dias ele chegava bem cedo e batia à porta de muitas consciências que passavam apressadas, cegas, surdas e mudas. Ele passou.

Fiore

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sábado, 26 de março de 2011

O causo da prefeita

Humor

Conta-se que logo que as mulheres começaram a participar mais ativamente da política, em uma pequena cidade do interior de São Paulo, uma candidata estava sendo muito espezinhada pelos opositores. O machismo era tão acirrado que os homens não aceitavam de maneira nenhuma que uma mulher disputasse o cargo de prefeito. Prevendo que ela pudesse ganhar a eleição e, temendo a prestação de obediência a uma mulher, os machões começaram a inventar de tudo sobre a candidata.
Líder absoluta nas pesquisas e viva como era, a candidata procurou manter silêncio para não perder os pontos que a garantiam como vencedora. Mas o assédio dos opositores foi tão grande que não foi possível suportar. Era o último comício e os machões não podiam ficar sem a resposta. A candidata deixou que tudo corresse normalmente para, no último instante dar a resposta que arrasaria de vez com seus adversários. Mas houve um pequeno erro de cálculo, ou melhor, na colocação das palavras.
Quando começou seu discurso, a futura prefeita manteve sempre crescente a vibração e a entonação da voz, até que chegou o momento que ela esperou durante toda a campanha. Quase aos berros, a candidata disse: “Eu sei que tem muitos machos por aí metendo o pau atrás de mim. Mas eu quero dizer pra esses machos que, se eles forem machos de verdade, que venham meter o pau na minha frente!!!”. A multidão não se conteve e caiu na risada. A mulher foi eleita e o causo ficou registrado na história. Coisas da política, uai...

Fiore

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Paralelepípedos

Humor

Aconteceu em uma pequena cidade do interior do Estado de São Paulo. O prefeito era um homem muito dinâmico e trabalhador. Não gostava de ver o serviço que precisava ser feito sem que ninguém o fizesse. Era daqueles que, se fosse necessário, pegava na picareta e ajudava os trabalhadores braçais a avançarem com as tarefas do dia. Foi com esse espírito empreendedor que ele procurou atender aos anseios de toda a população de seu município.
Além da construção de guias e sarjetas, viadutos, iluminação de ruas e de bairros inteiros, o prefeito também colocou calçamentos em todas as ruas da cidade. Não ficou nenhuma sequer, sem receber paralelepípedos. A cidade estava um verdadeiro brinco. Foi uma gestão digna dos maiores elogios. Ninguém ousava falar contra a administração do prefeito que mais trabalhou para o seu povo. Se na época houvesse reeleição, certamente ele seria reeleito.
Depois de muito trabalho e da consciência do dever cumprido, era chegado o momento de escolher o sucessor para que as obras pudessem ter continuidade e a cidade manter o ritmo de progresso que vinha tendo até aquele momento. Candidatos não faltavam. Todos sabiam que seria uma disputa fácil. Aliás, ninguém queria disputar contra porque sabia que seria uma batalha perdida. O prefeito dificilmente deixaria de fazer seu sucessor.
A campanha foi para as ruas e as pesquisas apontavam vitória muito fácil, mas nem por isso o prefeito amoleceu seu discurso. Experiente, dizia sempre que uma eleição se ganha nas urnas (e, convenhamos), ele estava certo. Não podia deixar nenhuma margem de dúvida, por isso, logo no primeiro comício, no ímpeto do seu discurso disse: “nossa cidade hoje pode se orgulhar porque teve um prefeito que construiu viadutos, guias e sarjetas, iluminou ruas e bairros e paralelepiPEIDOU a cidade inteira”.
O público despencou em risos e gargalhadas. Mas não foi esse pequeno descuido que derrubou quatro anos de trabalho e dedicação. Ele venceu as eleições e, até hoje, quando se fala em comício, o povo se lembra do prefeito que (um dia) conseguiu paralelepiPEIDAR a cidade inteira. São coisas do folclore político. Acredite se quiser.


Fiore


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